A ARMADILHA
O homem nasce livre e por todo o lado está acorrentado. Mesmo quem se julga senhor dos outros; esse ainda é mais escravo do que eles. Como se fez esta transformação? Não sei.
Jean-Jacques Rousseau fez esta pergunta há duzentos anos, no início do seu Contrato Social. A menos que a resposta para esta questão básica seja encontrada, não é muito útil elaborar novos contratos sociais. Há algo que acontece, desde há muito tempo, no interior da sociedade humana, que torna impotente qualquer tentativa que vise esclarecer este grande enigma, bem conhecido de todos os grandes líderes da humanidade ao longo de milênios: o homem nasce livre, mas vive a sua vida como escravo.
Nenhuma resposta foi encontrada até hoje. Deve haver, no interior da sociedade humana, alguma coisa que atua de modo a impedir que se coloque a questão correta de maneira a chegar-se à resposta correta. Toda a filosofia humana é permeada pelo horrível pesadelo de que toda a procura é vã.
Alguma coisa, bem escondida, atua de forma a não permitir que se coloque a questão correta. Portanto, há algo que atua, contínua e eficazmente, desviando a atenção das vias, cuidadosamente camufladas, que levam até onde a atenção se deveria focar. O instrumento usado por esse algo bem camuflado para desviar a atenção do enigma fundamental é a evasiva de todo o ser humano em relação à Vida Viva. O elemento escondido é a peste emocional do homem.
É da formulação adequada do problema que dependerá a focalização apropriada da atenção, e disto dependerá chegar-se à descoberta da resposta correta à questão de como é possível que o homem, nascido livre, se encontre sempre e por todo o lado reduzido ao estado de escravo.
É evidente que os contratos sociais, quando visam honestamente salvaguardar a vida na sociedade humana, têm uma função crucial. Mas nenhum contrato social resolverá jamais o problema da angústia humana. Na melhor das hipóteses, o contrato social poderá ser um paliativo para manter a vida. Até agora, nunca foi capaz de acabar com a angústia da vida.Vejamos então os termos deste grande enigma:
Os homens são iguais ao nascer, mas não crescem iguais.
O homem elaborou grandes doutrinas, mas cada uma delas foi o instrumento da sua escravidão.
O homem é o «Filho de Deus», criado à Sua imagem; mas o homem é «pecador», exposto aos ataques do «Demônio». Como pode haver Demônio e Pecado, se Deus é o único criador de todos os seres?
A humanidade nunca conseguiu responder à pergunta de como pode existir o mal, se um deus perfeito criou e governa o mundo e os homens.
A humanidade tem sido incapaz de estabelecer uma vida moral que esteja de acordo com o seu criador.
A humanidade foi devastada por guerras e assassinatos de todo o tipo, desde o início da história escrita. Todos os esforços feitos para suprimir esta peste fracassaram.
A humanidade desenvolveu muitos tipos de religiões. Todas as religiões se revelaram, sem exceção, instrumentos de opressão e miséria.
A humanidade imaginou muitos sistemas de pensamento para enfrentar a Natureza. Mas a Natureza, sendo de fato funcional e não mecânica, sempre se lhe escapou por entre os dedos.
A humanidade correu sempre atrás de cada ínfima parcela de esperança e de conhecimento. Mas depois de três milênios de pesquisas, de tormentos, de sofrimentos, de assassinatos punindo heresias, de perseguições por faltas aparentes, ela não conseguiu mais do que algum conforto para uma minoria, sob a forma de automóveis, aviões, frigoríficos e aparelhos de rádio.
Depois de ter meditado durante milênios sobre os mistérios da natureza humana, a humanidade encontra-se exatamente no ponto de partida: tem de admitir a sua ignorância total. A mãe ainda fica sem saber o que fazer diante de um pesadelo que apavora o seu filho. O médico ainda não sabe o que fazer diante de algo tão simples como um defluxo nasal.
Geralmente, admite-se que a ciência não revela nenhuma verdade permanente. O universo mecânico de Newton não se coaduna com o verdadeiro universo, que não é mecânico, mas sim funcional. A representação que Copérnico faz de um mundo constituído por círculos «perfeitos» é errada. As órbitas planetárias e elípticas de Kepler não existem. A matemática não conseguiu ser aquilo que, com tanta certeza, prometia ser. O espaço não é vazio; ninguém jamais viu os átomos ou os germes aéreos das amebas. Não é verdade que a química possa interpretar os fatos da matéria viva, e as hormonas também não cumpriram as suas promessas. O inconsciente reprimido, supostamente a última palavra em psicologia, revelou-se uma criação artificial de um breve período da civilização, de tipo mecânico-místico. O espírito e o corpo, funcionando num único e mesmo organismo, estão ainda dissociados no pensamento humano. Uma física perfeitamente exata não é tão exata assim, do mesmo modo que os homens santos não são assim tão santos. De nada adianta a descoberta de novas estrelas, cometas ou galáxias. Novas fórmulas matemáticas também de nada adiantarão. É inútil filosofar sobre o sentido da Vida, se ignoramos o que é Vida. E, como «Deus» é Vida,o que todos os homens sabem, de nada serve procurar ou servir a Deus, já que ignoramos a quem servimos.
Tudo parece então convergir para um único facto: há algo basicamente e essencialmente errado em todo o processo pelo qual o homem aprende a conhecer-se a si próprio. A visão mecánico-racionalista do mundo faliu completamente.
Locke, Hume, Kant, Hegel, Marx, Spencer, Spengler, Freud e todos os outros foram, sem dúvida, grandes pensadores, mas de certa forma não preencheram o vazio, e a imensa maioria dos homens não foi tocada pela pesquisa filosófica. Enunciar a verdade com modéstia não altera o problema. Freqüentemente, isso nada mais é do que um subterfúgio para nos esquivarmos à questão essencial. Aristóteles, cujas idéias foram lei durante séculos, estava errado; a sabedoria de um Platão, ou a de um Sócrates, não servem para muita coisa. Epicuro também não teve sucesso, nem nenhum santo.
É grande a tentação de aderir ao ponto de vista católico, após os desastrosos resultados da última grande tentativa da humanidade, feita na Rússia, de tomar nas mãos o seu próprio destino. Os efeitos catastróficos de todas as iniciativas desse tipo explodiram aos olhos de todos. Para onde quer que olhemos, vemos o homem a correr em círculos, como se, preso numa armadilha, tentasse em vão escapar da sua prisão e do seu desespero.
É possível escapar da armadilha. Mas para alguém sair de uma prisão, precisa primeiro de saber que está numa prisão. A armadilha é a estrutura emocional do homem, a sua estrutura de carácter. Pouco adianta elaborar sistemas de pensamento sobre a natureza da armadilha, quando a única coisa que importa é encontrar a saída. Tudo o resto é inútil: é inútil cantar hinos sobre o sofrimento na prisão (*) como fazem os escravos negros; é inútil compor poemas sobre a beleza da liberdade fora da prisão, tal como sonhamos com ela de dentro da prisão; é inútil prometer uma vida fora da prisão, após a morte, como faz o Catolicismo às suas congregações; éinútil confessar, como os filósofos da resignação, um semper ignorabimus; é inútil elaborar um sistema filosófico em torno do desespero de viver na prisão, como fez Schopenhauer; é inútil sonhar com um super-homem totalmente diferente do homem cativo, como fez Nietzsche, que, ao acabar preso num asilo de loucos, finalmente escreveu − muito tarde − a verdade sobre si mesmo...
A primeira coisa a fazer é procurar a saída da prisão.
A natureza da armadilha só apresenta interesse na medida em que ajude a responder a esta única questão crucial: ONDE FICA A SAÍDA?
Pode-se enfeitar a prisão a fim de a tomar mais habitável. Isto fazem-no os Miguel Ângelos, os Shakespeares, os Goethes. Podem-se inventar artifícios para prolongar a vida na prisão. Isto fazem-no os grandes cientistas e médicos, os Meyers, os Pasteurs e os Flemings. Pode aparecer alguém muito hábil em tornar a soldar os ossos quebrados dos que caem na armadilha.
Mas o essencial ainda é: encontrar a saída da prisão.
Onde fica a saída que conduz ao infinito espaço aberto?
A saída continua escondida. Este é o maior enigma. Mas vejamos a situação mais ridícula e, ao mesmo tempo, mais trágica:
A saída é claramente visível para todos os que estão presos na armadilha (*). Mas ninguém parece vê-la. Todos sabem onde fica a saída. Mas ninguém se move em direcção a ela; pior ainda, quem quer que faça qualquer movimento em direcção à saída, quem quer que a indique, é declarado louco, criminoso, pecador digno das chamas do inferno.
No fim de contas o problema não está na armadilha, nem mesmo em descobrir a saída. O problema está nos prisioneiros.
Visto de fora da prisão, tudo parece incompreensível para uma mente simples. Há mesmo qualquer coisa de insano. Porque é que os prisioneiros não vêem a saída tão nitidamente visível, porque é que não se dirigem para ela? Logo que chegam perto, começam a gritar e a fugir. Se algum deles tenta sair, os outros matam-no. Muito poucos conseguem escapulir-se durante a noite, quando todos dormem.
Esta era a situação na qual se encontrava Jesus Cristo. Este foi também o comportamento dos prisioneiros que intentavam matá-lo.
A função da Vida viva está à nossa volta, está em nós, nos nossos sentidos, mesmo à frente do nariz, nitidamente visível em cada animal, em cada árvore, em cada flor. Sentimo-la no nosso corpo e no nosso sangue. Mas para os prisioneiros ela continua a ser o maior, o mais impenetrável dos enigmas.
No entanto, a Vida não era um enigma. O enigma está em como isto pôde permanecer insolúvel durante tanto tempo. O grande problema da biogénese e da bioenergia é facilmente acessível pela observação directa. O grande problema da Vida e da origem da Vida é um problema psiquiátrico; é um problema da estrutura de carácter do Homem, que durante tanto tempo conseguiu evitar a sua solução. O flagelo do cancro não é o grande problema que parece ser. O grande problema é a estrutura de caracter dos cancerologistas, que o ofuscaram tão eficazmente.
O verdadeiro problema do homem é a evasão básica do essencial. Esta evasão e fuga fazem parte da estrutura profunda do homem. Fugir da saída da prisão é o resultado dessa estrutura do homem. O homem teme e detesta a saída da prisão. Ele resguarda-se acirradamente contra qualquer tentativa para encontrar essa saída. É este o grande enigma.
Tudo isso parece certamente insano aos seres vivos encerrados na prisão. Um homem que, de dentro da prisão, falasse dessas coisas loucas, estaria destinado à morte; estaria condenado à morte se fosse membro de uma academia das ciências que consagrasse muito tempo e dinheiro ao estudo detalhado dos muros da prisão. Ou se fosse membro de uma dessas congregações religiosas que oram, resignadas ou cheias de esperança, para sair da prisão. Ou se fosse um desses pais de família preocupados em não deixar os seus morrerem de fome na prisão. Ou se fosse empregado de uma dessas indústrias que se esforçam para tomar a vida na prisão o mais confortável possível. De uma forma ou de outra, ele estaria condenado à morte: pelo ostracismo, pelo aprisionamento por ter transgredido alguma lei ou, em certos casos, pela cadeira eléctrica. O criminoso é uma pessoa que achou a saída e por ali se precipita, violentando os seus companheiros de prisão. Os loucos que apodrecem nos asilos e que se contorcem, como as feiticeiras da Idade Média, sob o efeito de choques eléctricos, também são prisioneiros que viram a saída da prisão e não conseguiram superar o pavor comum de se aproximar dela.
Fora da prisão, muito perto, descortina-se a Vida viva, em tudo o que se alcança com a visão, a audição, o olfacto. Para os prisioneiros é uma agonia eterna, um suplício de Tántalo. Vêem-na, sentem-na, tocam-lhe, desejam-na sem cessar, mas sair tomou-se uma impossibilidade. Só é possível consegui-lo em sonhos, em poemas, na música, na pintura, mas já não está ao seu alcance. As chaves para sair da prisão estão cimentadas na armadura do nosso carácter e na rigidez mecânica do corpo e da alma.
Essa é a grande tragédia. E Cristo conhecia-a.
Se vivermos durante muito tempo no fundo de uma cave escura, acabaremos por detestar a luz do Sol. É mesmo possível que os nossos olhos acabem por perder a capacidade de tolerar a luz. Eis porque se acaba por odiar a luz do Sol.
Para habituar os seus descendentes à vida na prisão, os detidos desenvolvem técnicas elaboradas, destinadas a manter a vida num nível limitado e baixo. Na prisão não há espaço suficiente para grandes lances de pensamento e de acção. Cada movimento é restringido por todos os lados. Isso teve como efeito, no decorrer do tempo, a atrofia dos próprios órgãos da Vida viva; as criaturas encerradas no fundo da prisão perderam o sentido da plenitude da Vida.
Restou uma nostalgia intensa de uma vida de felicidade e a lembrança de uma Vida feliz, de há muito tempo antes do aprisionamento. Mas a nostalgia e a lembrança não podem ser vividas na vida real. A conseqüência dessa opressão é então o ódio à Vida.
Sob o título de «o assassinato de cristo», reuniremos todas as manifestações desse ódio ao Vivo.
Com efeito; Cristo foi vítima do ódio ao Vivo por parte dos seus contemporâneos. O seu destino trágico oferece-se como lição sobre o que as gerações futuras enfrentarão quando quiserem restabelecer as leis da Vida. A sua tarefa principal consistirá em resistir à maldade dos homens («Pecado»). Explorando o futuro e as possibilidades − boas ou más − que ele nos oferece, veremos a história de Cristo em toda a sua trágica significação.
O segredo do porquê da morte de Jesus Cristo permanece indecifrado. A tragédia que se desenrolou há dois mil anos, e cujo impacte sobre a humanidade foi imenso, aparece-nos como um requisito lógico intrínseco ao homem couraçado. A verdadeira questão do assassinato de Cristo permaneceu intocada ao longo de dois mil anos, apesar dos inúmeros livros, estudos, pesquisas e investigações sobre esse assassinato. O enigma do assassinato de Cristo permaneceu num domínio inacessível ao olhar e ao pensamento de muitos homens e mulheres estudiosos; e esse próprio facto faz parte do segredo. O assassinato de Cristo é um enigma que atormentou a existência humana durante pelo menos todo o período da história escrita. É o problema da estrutura do carácter humano couraçado,e não somente de Cristo. Cristo foi vítima dessa estrutura de carácter humano, porque mostrou qualidades e maneiras de comportamento que têm, sobre um carácter couraçado, o mesmo efeito que um objecto vermelho sobre o sistema emocional de um touro selvagem. Nesse sentido, podemos dizer que Cristo representa o princípio da Vida em si. A forma foi determinada pela época da cultura judaica sob domínio romano. Pouco importa que o assassinato de Cristo tenha ocorrido no ano 3000 a. C. ou no ano 2000 d.C. Cristo teria sido certamente assassinado em qualquer época e em qualquer cultura em que as condições do conflito entre o princípio da vida (OR) e a peste emocional (EP) fossem, no plano social, as mesmas que eram na Palestina no tempo de Cristo.
Uma das características básicas do assassinato do Vivo pelo animal humano couraçado é a de ser camuflado de várias maneiras e sob várias formas. A superstrutura da existência social do homem, tal como o sistema económico, as acções guerreiras, os movimentos políticos irracionais e as organizações sociais ao serviço da supressão da Vida, abafa a tragédia básica que assedia o animal humano numa torrente de racionalizações, de disfarces e de evasões da questão essencial; além disso, a superstrutura defende-se com uma racionalidade perfeitamente lógica e coerente, mas que só é válida dentro de um sistema que opõe a lei ao crime, o Estado ao povo, a moral ao sexo, a civilização à natureza, a polícia ao criminoso, e assim por diante, percorrendo todo o rol de misérias humanas. Não há nenhuma possibilidade, seja ela qual for, de conseguir transpor esse lodaçal, a não ser que a pessoa se coloque fora do holocausto, e não se deixe atingir pelo escândalo. Apressamo-nos a assegurar ao leitor que não consideramos esse escândalo e essa agitação vazia como sendo meramente irracionais, como simples actividade desprovida de finalidade e significação. Uma característica crucial da tragédia é o facto de que esse nonsense é válido, significativo enecessário se o considerarmos no domínio que lhe é próprio e sob determinadas condições do comportamento humano. Mas aqui a irracionalidade da peste apoia-se era rochedo sólido. Mesmo o silêncio que, há milênios, envolvia a função do orgasmo, a função da vida, o assassinato de Cristo ê outras questões cruciais da existência humana, parece perfeitamente sensato aos olhos do prudente estudioso do comportamento humano.
A raça humana enfrentaria o pior, o mais devastador dos desastres se, de repente, chegasse, de uma só vez, a ter pleno conhecimento da função da Vida, da função do orgasmo e dos segredos do assassinato de Cristo. Há boas e justas razões para que a raça humana se tenha recusado a conhecer a profundidade e a verdadeira dinâmica da sua miséria crónica. Uma tal erupção repentina de conhecimentos paralisaria e destruiria tudo o que, de certa forma, mantém a sociedade em funcionamento, a despeito das guerras, da fome, dos massacres emocionais, da miséria das crianças, etc.
REICH, Wilhelm. O Assasinato de Cristo. 1.ed.São Paulo: Martins Fontes. 1982